terça-feira, 4 de março de 2008

A Revolução Islâmica

[...] Eu preparava-me a mim própria para todas as circunstâncias em que a imposição da lei islâmica pudesse afectar a minha vida. Pensei em todas as coisas que passariam a ser diferentes: os julgamentos a que eu já não poderia presidir, pois o Ministério iria ficar cheio de clérigos, e os livros religiosos que eu passaria a usar como referência jurídica. Mas em toda a ansiedade da especulação, nunca imaginei que o medo do novo regime jurídico, mesmo sendo um regime catastrófico, me perseguisse até à minha sala de estar, até ao meu casamento. Contudo, não havia vantagem nenhuma em negá-lo. Desde o momento em que li no jornal à cerca do novo código penal, tinha começado a comporta-me de movo diferente com Javad. Era como se o meu ser estivesse às avessas. A percepção da mais pequena consideração ou de um comentário fora de contexto lançava-me para o caminho da luta ou, como diz a expressão persa, fazia-me montar guarda à dianteira. Não conseguia evitá-lo.
No dia em que eu e Javad nos casámos, fizemos confluir as nossas vidas enquanto dois seres iguais. Mas, de acordo com estas leis, ele mantinha-se uma pessoa, enquanto eu me tornava uma propriedade A lei permitia que ele se divorciasse de mim por capricho, ficasse com a custódia dos nossos futuros filhos ou adquirisse três mulheres, mantendo-as em casa juntamente comigo. Ainda que, racionalmente, eu soubesse que dentro de Javad não havia escondido este tipo hipotético de monstro, à espera apenas de se libertar para roubar os nossos supostos filhos e casar com uma multidão, eu continuava a sentir-me oprimida. Duas semanas depois de me ter tornado nesta nova pessoa obstinada e defensiva, achei que Javad e eu precisávamos de ter um conversa. [...]
E foi nesse momento que houve um golpe de inspiração. Eu sabia o que ele podia fazer! Ele podia assinar um acordo pós-nupcial que me garantisse o direito de me divorciar dele, bem como a preferência da custódia dos nossos futuros filhos, na eventualidade da separação. [...]
Quando chegámos ao notário, o homem limitou-se a olhar bem para Javad pelos óculos de fundo-de-garrafa, como se ele tivesse enlouquecido. “Você tem alguma noção daquilo que está a fazer, meu pobre homem?”, perguntou talvez presumindo que Javad era analfabeto, tendo sido enganado ao ponto de querer assinar tal contracto. “Por que é que você está a fazer isto?”
Nunca hei-de esquecer a resposta de Javad:
“A minha decisão é irrevogável. Quero salvar a minha vida.”

Em “O DESPERTAR DO IRÃO” de Shirin Ebadi, Nobel da Paz 2003

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