sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Caricaturas Divinas

Parece que a polémica das caricaturas de Maomé continua acesa, agora com a tentativa de assassinato do caricaturista em questão, Kurt Westergaard. Quantos de nós já viram sequer as caricaturas? É curioso que não tenha havido jornal português sequer (que eu tenha conhecimento) que se tenha atrevido a desafiar as supostas autoridades eclesiásticas islâmicas, publicando alguma das caricaturas blasfemas. E só nos resta, aos portugueses, opinar, discorrer, reflectir sem conhecimento completo da realidade, baseando-nos em abstracções, abstracções que talvez sejam apenas meras projecções culturais e sentimentais próprias no que já de si tão pouco conhecemos do mundo islâmico. Cá entre nós, detesto que me imponham aquilo que posso ver e aquilo que não posso; e quando opino, gosto de conhecer o melhor possível o objecto de opinião. E creio que todos, estando de acordo ou não, temos o direito de ver umas caricaturas, que, a julgar pela polémica que criaram, são material jornalístico altamente relevante.

Sem tentar impor um sentido de opinião, nem muito menos tendo como objectivo ofender, mas não ignorando que a ofensa possa ser um "dano colateral" do pensamento reflexivo, comunicado por palavras ou imagens, gostaria que algum jornal português tivesse a coragem para publicar o objecto da polémica. Quem quer ver veja, quem não quer não veja. Não posso deixar de colocar Kurt Westergaard na minha galeria daqueles heróis que não têm medo de dizer aquilo que pensam, por palavras, acções e ilustrações, sem omissões, arriscando a própria vida, enquanto que outros os condenam ao calvário, cobardemente, a partir dum templo, que outrora se teria chamado Templo de Jerusalém.

"Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Acabais de ouvir a blasfémia. Que vos parece?" Eles responderam: "É réu de morte". Cuspiram-Lhe depois no rosto e deram-Lhe socos. Outros esbofetearam-n'O, dizendo: "Adivinha ó Cristo, quem foi que Te bateu" (Mateus 26, 65-67)

Carta enviada ao director do Público (Para publicação) em 8 de Janeiro de 2010

sábado, 18 de outubro de 2008

Ciência e Religião

Se acredita em Deus ou, em geral, nalguma forma de ente místico, saiba que a maioria da humanidade está do seu lado. Se no entanto não é crente, pode considerar-se, em termos estatísticos, uma pessoa estranha. Se a demonstração da existência de Deus se baseasse no número de fieis, a coisa estaria clara. Não é assim, ainda que no que respeita a este artigo isso é, na realidade o que menos importa. Crente e não crentes estão divididos pela mesma pergunta: como podem eles não acreditar/acreditar (corte o que não lhe corresponda)? Este texto pretende resumir as respostas que a ciência dá a ambas as perguntas. Este ano os físicos estão pletóricos porque, graças ao acelerador de partículas LHC que começará a funcionar brevemente em Genebra, poderão finalmente procurar uma partícula que explique a origem da massa, à qual chamam a partícula de Deus. Os matemáticos, por outro lado, têm desde há mais de dois séculos uma fórmula que relaciona cinco número essenciais em matemática – entre eles o famoso pi - , a que alguns, não todos, se referem com a fórmula de Deus. Contudo, epítetos à parte, o certo é que a ciência não se ocupa de Deus. Ou não de demonstrar a sua existência ou inexistência. Neste terreno, as opiniões de Einstein – expressas nunca carta recentemente leiloada –valem tanto como as de qualquer outro. No entanto, é verdade que a ciência se pergunta a si própria porque existe a religião. Nem é sequer um tema de investigação novo, mas hoje em dia há mais ferramentas e dados para o abordar, e desde perspectivas mais variadas. Aos sociólogos, antropólogos ou filósofos, que tradicionalmente têm estudado o fenómeno da religião ou da religiosidade, unem-se agora biólogos, paleoantropólogos, psicólogos e neutrocientistas. Inclusive, há quem use os neologismos neuroteologia, ou neurociência da espiritualidade. Uma evidência do auge desta área é o facto de que um grupo da Universidade de Oxford acaba de receber 2,5 milhões de euros de uma fundação privada para investigar durante três anos “como as estruturas da mente humana determinam a expressão religiosa”, explica um dos directores do projecto, o psicólogo evolucionista Justin Barret, do Centro para a Antropologia e para a Mente da Universidade de Oxford.

Abordar cientificamente a pergunta “porque é o ser humano religioso” não é fácil. Um exemplo: experiências recentes identificam estruturas cerebrais relacionadas com a experiência religiosa. Significa isso que a evolução favoreceu um cérebro pro-religião porque possuir um valor positivo? Ou, antes pelo contrário, é apenas um subproduto dum cérebro inteligente? Tirar conclusões é difícil, e impossível no que se refere a se Deus é ou não real. Que a religião tem os seus circuitos neuronais, significa que Deus é um mero produto do cérebro, dizem uns. Não: foi Deus quem preparou o meu cérebro para poder comunicar-se comigo, respondem outros. Portanto, “não vamos procurar provas da existência ou inexistência de Deus”, diz Barrett.

Desde quando é o homem religioso? Eudald Carbonell, da Universidade Rovira i Virgili e co-director da escavação de Atapuerca, relembra que as “as crenças não fossilizam”, mas sim podem fazê-lo os rituais fúnebres, por exemplo. Assim, acredita-se que há cerca de 200.000 anos o Homo Heidelbergensis, antepassado dos Neandertais e que já mostrava “vestígios de um certo conceito tribal”, já teria tratado os seus mortos de forma distinta. Do que há menos dúvidas é que desde a aparição do Homo Sapiens o fenómeno religioso não apresenta descontinuidades. “A religião forma parte da cultura dos seres humanos. É universal, está em todas as culturas conhecidas”, afirma Eloy Gómez Pellón, antropólogo da Universidade de Cantábria e professor do Instituto de Ciência das Religiões da Universidade Complutense de Madrid.
Porque é que isto é assim? Para Carbonell há um facto claro: “A religião, da mesma forma que a cultura e a biologia, é um produto de selecção natural”. O que significa que a religião – ou a capacidade para a desenvolver – da mesma forma que, por exemplo, a fala, seria uma característica que dá vantagem à espécie humana, e por isso foi sendo favorecida pela evolução. Que vantagem? “Isso já é filosofia pura”, responde Carbonell. Como já se disse, as crenças não fossilizam.
Assim que façamos filosofia. Ou apresentemos hipóteses: “Um aspecto importante aqui é a sociabilidade”, disse Carbonell. “Quando um hominídeo aumenta a sua sociabilidade interage de forma distinta com o medo, e começa a perguntar-se porque é que é diferente dos outros animais, que acontece depois da morte... E não tem respostas empíricas. A religião viria tapar esse vazio.”
Esta visão enquadra-se com a antropológica. A religião, segundo Gómez Pellón, fornece os valores que contribuem para estruturar uma comunidade em torno a princípios comuns. Contudo, “e se foram esses valores, e não a religião em si, o que foi seleccionado?” Curiosamente, assinala Gómez Pellón, “os valores básicos coincidem em todas as religiões: solidariedade, moderação, humildade...”. Talvez o valor biológico da humildade não seja mensurável, mas há muitos modelos que estudam o altruísmo e as suas possíveis vantagens evolutivas em espécies diversas, incluindo a humana.
Também concordam Carbonell y Gómez Pellón ao apontar o papel “calmante” da religião. “A religião ajuda a controlar a ansiedade de não saber”, disse o antropólogo. “Quanto mais se sabe, mais se sabe que não se sabe. E isso gera ansiedade. Além disso, o ser humano vive pouco. “Que acontece depois? Esta pergunta é comum a todas as culturas, e a religião ajuda a conviver com ela, dá-nos segurança”. Este facto é constatado por quem lida diariamente com pessoas próximas a situações extremas. “É verdade que na aceitação do processo de morrer as crenças podem ajudar”, refere Xavier Gómez-Batiste, cirurgião oncologista e chefe do serviço dos cuidados paliativos do hospital Universitário de Bellvitge.
Fossem estas vantagens insuficientes, outros estudos sugerem que as pessoas religiosas se deprimem menos, têm mais auto-estima e inclusive “vivem mais”, diz Barrett. “O compromisso religioso favorece o bem-estar psicológico, emocional e físico. Há evidencias de que a religião ajuda a confiar nos demais e a manter comunidades mais duradouras”. A religião parece útil. Isso explica que o ser humano “seja naturalmente receptivo a crenças e actividades religiosas”, prossegue.
Naturalmente receptivos. Significa isto que estamos organicamente predispostos a ser religiosos? O estará o nosso cérebro? Nos últimos anos vários grupos de investigação recorreram a técnicas de imagem para estudar o cérebro vivo em “atitude religiosa”, por assim dizer. “São experiências difíceis de desenhar porque a experiência religiosa é muito variada”, adverte Javier Cudeiro, chefe do grupo de Neurociências e Controlo Motor da Universidade da Corunha. Os resultados não costumam ser conclusivos. Todavia, aceita-se que há várias áreas implicadas na experiência religiosa.
Num desses trabalhos pedia-se a voluntários – um grupo de crentes e outro de não crentes – que recitassem textos enquanto se submetiam a um exame cerebral. Ao recitar um determinado salmo, activavam-se estruturas distintas nos cérebros dos crentes e dos não crentes. Não é surpreendente. “Considera-se dado adquirido”, explica Cudeiro; da mesma forma que existem áreas implicadas no cálculo e na fala.
A pergunta é se essas estruturas foram expressamente seleccionadas para a religião no decurso da evolução. Cudeiro não concorda. “A experiência religiosa relaciona-se com alterações na estrutura do cérebro, e neuroquímicos que levam à aparição da autoconsciência, da linguagem...alterações que permitem processos cognitivos complexos; não existem para uma função específica”. Ou seja, que a religião bem poderia ser, como diz Carbonell, um efeito secundário da inteligência.
Outros estudos de neuroteologia têm estudado o cérebro de freiras enquanto evocam a sensação de união com Deus, e de monges a meditar. Um dos autores destes trabalhos, Mário Beauregard, da Universidade de Montreal, aspira inclusive a poder gerar num dos não crentes a mesma sensação mística dos crentes, a que se atribuem tantos efeitos benéficos: “Se soubessemso como alterar (com fármacos ou estimulação eléctrica) estas funções do cérebro, poderíamos ajudar as pessoas a alcançar os estados espirituais usando um dispositivo que estimule o cérebro”, declarou Beauregard à revista Scientific American.
O até agora disposto neste texto sugere que a questão principal não é tanto porque é que existe a religião, mas porque é que existe o ateísmo. Com todas as vantagens da religião, porque é que há tanta gente ateia? “O Ateísmo actual é um fenómeno novo e queremos investigá-lo”, diz Barrett por telefone. Tem que ver com o avanço da ciência, capaz de dar ao menos algumas dessas tão procuradas respostas? Vários estudos indicam que, de facto, os cientistas são menos religiosos que a media. No entanto há excepções; os matemáticos e os físicos, em especial os que se dedicam ao estudo da origem do universo – precisamente! –, tendem a ser mais religiosos. Não há consenso sobre se um maior nível de educação, ou coeficiente intelectual, está relacionado com o ser-se menos religioso. “O ser-se religioso ou não depende seguramente de muitos factores que ainda não conhecemos”, diz Barrett.

"As superstições mais infantis”
As opiniões de Albert Einstein sobre o fenómeno religioso têm sido objecto de polémica entre especialistas. Uma carta inédita remetida ao filósofo Eric Guikind em 1954 revela o génio mais céptico. O texto que se segue é um conjunto de extractos da missiva, publicada por The Guardian (...) “A palavra Deus, para mim, não é mais do que a expressão e o produto das fraquezas humanas, e a Bíblia uma colecção de lendas dignas mas primitivas que são bastante infantis. Nenhuma interpretação, por subtil que seja, pode mudar isso (para mim). Tais interpretações subtis são muito variadas em natureza, e não têm praticamente nada a ver com o texto original. Para mim, a religião judaica, assim como todas as outras religiões, é uma encarnação das superstições mais infantis. E o povo judeu, ao que me alegro de pertencer e com cuja mentalidade tenho uma profunda afinidade, não tem nenhuma qualidade diferente, para mim, das de qualquer outro povo. Segundo a minha experiência, não são melhores que outros grupos humanos, ainda que estejam protegidos do piores cancros porque não possuem nenhum poder. À parte disso, não me parece que tenham algo de escolhidos. Faz-me confusão que você reivindique uma posição de privilégio e que a defenda com dois muros de orgulho, um externo, como homem, e outro interno, como judeu. Como homem reivindica, por assim dizer, estar isento de uma casualidade que por tudo o resto aceita, e como judeu, o privilégio do monoteísmo. Mas uma casualidade limitada deixa de ser casualidade, como o nosso maravilhoso Spinoza reconheceu de maneira incisiva, seguramente antes que ninguém. E as interpretações animistas das religiões da natureza não estão, em principio, anuladas pela monopolização. Com semelhantes muros só nos podemos enganar (...) a nós próprios, mas os nossos esforços morais não saem beneficiados. Pelo contrário (...)”.

em el pais 2008.05.20

terça-feira, 1 de abril de 2008

Liberdade

Sobre esta página escrevo
teu nome que no peito trago escrito
laranja verde limão
amargo e doce o teu nome.

Sobre esta página escrevo
o teu nome de muitos nomes feito água e fogo lenha vento
primavera pátria exílio.

Teu nome onde exilado habito e canto mais do que nome:
navio onde já fui marinheiro
naufragado no teu nome.

Sobre esta página escrevo o teu nome: tempestade.
E mais do que nome: sangue. Amor e morte. Navio.
Esta chama ateada no meu peito
por quem morro por quem vivo este nome rosa e cardo
por quem livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo o teu nome: liberdade.

(Manuel Alegre, A Praça da Canção)

terça-feira, 4 de março de 2008

A Revolução Islâmica

[...] Eu preparava-me a mim própria para todas as circunstâncias em que a imposição da lei islâmica pudesse afectar a minha vida. Pensei em todas as coisas que passariam a ser diferentes: os julgamentos a que eu já não poderia presidir, pois o Ministério iria ficar cheio de clérigos, e os livros religiosos que eu passaria a usar como referência jurídica. Mas em toda a ansiedade da especulação, nunca imaginei que o medo do novo regime jurídico, mesmo sendo um regime catastrófico, me perseguisse até à minha sala de estar, até ao meu casamento. Contudo, não havia vantagem nenhuma em negá-lo. Desde o momento em que li no jornal à cerca do novo código penal, tinha começado a comporta-me de movo diferente com Javad. Era como se o meu ser estivesse às avessas. A percepção da mais pequena consideração ou de um comentário fora de contexto lançava-me para o caminho da luta ou, como diz a expressão persa, fazia-me montar guarda à dianteira. Não conseguia evitá-lo.
No dia em que eu e Javad nos casámos, fizemos confluir as nossas vidas enquanto dois seres iguais. Mas, de acordo com estas leis, ele mantinha-se uma pessoa, enquanto eu me tornava uma propriedade A lei permitia que ele se divorciasse de mim por capricho, ficasse com a custódia dos nossos futuros filhos ou adquirisse três mulheres, mantendo-as em casa juntamente comigo. Ainda que, racionalmente, eu soubesse que dentro de Javad não havia escondido este tipo hipotético de monstro, à espera apenas de se libertar para roubar os nossos supostos filhos e casar com uma multidão, eu continuava a sentir-me oprimida. Duas semanas depois de me ter tornado nesta nova pessoa obstinada e defensiva, achei que Javad e eu precisávamos de ter um conversa. [...]
E foi nesse momento que houve um golpe de inspiração. Eu sabia o que ele podia fazer! Ele podia assinar um acordo pós-nupcial que me garantisse o direito de me divorciar dele, bem como a preferência da custódia dos nossos futuros filhos, na eventualidade da separação. [...]
Quando chegámos ao notário, o homem limitou-se a olhar bem para Javad pelos óculos de fundo-de-garrafa, como se ele tivesse enlouquecido. “Você tem alguma noção daquilo que está a fazer, meu pobre homem?”, perguntou talvez presumindo que Javad era analfabeto, tendo sido enganado ao ponto de querer assinar tal contracto. “Por que é que você está a fazer isto?”
Nunca hei-de esquecer a resposta de Javad:
“A minha decisão é irrevogável. Quero salvar a minha vida.”

Em “O DESPERTAR DO IRÃO” de Shirin Ebadi, Nobel da Paz 2003